domingo, 18 de março de 2018

Da Ribeira às Quintas: a leitura da urbe através dos seus poetas, cronistas, fotógrafos. Inquietações!


Da Ribeira às Quintas: a leitura da urbe através dos seus poetas, cronistas, fotógrafos. Inquietações!
Luciano Capistrano
Professor: Escola Estadual Myriam Coeli
Historiador: SEMURB/Parque da Cidade

O poeta e folclorista Deífilo Gurgel nos transporta em sua poesia a Ribeira Velha de Guerra, uma Ribeira de um tempo passado, uma Ribeira a permanecer na escrita de cronistas e memorialistas, presente ainda, em fotos amareladas guardadas em empoeirados arquivos. Diz o poeta:
[ ... ]
Em frente ao ‘Cova da Onça’,
Parrepistas liberais
Trocam mais que insultos, tiros.
Morre o povo, corre o povo,
Que todos somos mortais.

Tabuleiro da Baiana”,
Fumaça” serve cartolas
- banana, queijo e canela –
Para a fome dos bacanas.

Ai perto, o Potengi
delira em festas, é tarde
de regatas, o sol arde
e arde o povo, em frenesi
[ ... ]

Ribeira velha de guerra,
às tuas noites de paz,
retornam velhas figuras
que os anos não trazem mais.
[ ... ]
( Deífilo Gurgel – Os Bens Aventurados, 2005)

A poesia caminha na nostalgia, falando de um lugar distante no tempo, um lugar vivo na memória de quem ao andar no largo do Teatro Alberto Maranhão, onde hoje funciona o museu de cultura popular Djalma Maranhão, antes de ser erguida a antiga rodoviária, encontrava-se o Tabuleiro da Baiana, lugar de encontro da boêmia da cidade que se fazia “metrópole”, ainda muito provinciana.
        A cidade de Natal tem na Ribeira um dos seus primeiros bairros. Lugar de canguleiros, lugar berço das atividades comerciais. Região portuária, tem na rua Chile, antiga rua do Comércio, às marcas, o testemunho das embarcações embarcando e desembarcando produtos, viajantes saindo e chegando na terra do rio grande, fervilhando vida no Cais da Tavares de Lyra. Era um prenúncio de uma urbe em rota de desenvolvimento.
Bairro das grandes lojas, a Ribeira era o centro comercial, lugar chic de Natal, como bem informou Lair Tinôco, em Tempo de Saudade, saudosa, assim se refere ao bairro de suas memórias:
A Ribeira era formada de comércio e residências. A rua Dr Barata era a rua chic da cidade, isto no que diz respeito aos seus estabelecimentos comerciais. Destes estabelecimentos salientavam-se “A Formosa Síria Armazém Potiguar”, “Armarinho Santa Terezinha”, Tácito M. Brandão”, “Relojoaria Farache”, “Sapataria Nolasco”, “Casa Lux”, “Sérgio Severo”, com ótimas representações, entre elas, rádio Philips, Holandeses legítimos, além de outros tantos estabelecimentos. ( TINÕCO, 1992, p. 48)
          Percebe se na fala/escrita de Lair Tinôco, o quanto era importante o comércio, deste que é apontado por alguns como o segundo bairro a ser criado em nossa cidade, uma circulação de mercadorias e pessoas davam ao bairro no início do século passado, nas primeiras décadas do século XX, uma feição de cidade polo, fazendo jus ao título de capital do Rio Grande do Norte, condição muitas vezes posta em questão por ter ao longo do tempo um desenvolvimento econômico inferior a outros municípios potiguares, como por exemplo Macaíba, cidade vizinha , Macaíba exerceu até o início do século XX, intensa atividade econômica, tendo sua balança comercial em alguns momentos ultrapassado a capital do estado. O empório instalado naquele município por Fabricio Gomes Pedroza, transformou o porto do Guarapes, em diversos momentos, mais movimentado do que o porto de Natal. Os desafios enfrentados por antigos administradores foram enormes. Em fins do século XIX, já existia por parte de comerciantes uma demanda com relação a modernização do porto da capital potiguar, como bem assinala a professora Giovana Paiva de Oliveira, em De Cidade a Cidade:
Por sua vez, o comércio local reivindicava também as obras de melhoramento do porto de Natal, pois dependia da compra de mercadorias em centros produtores, e a entrada da barra do rio não permitia o acesso de vapores de maior porte. Acreditava-se que superado esse obstáculo, o comércio natalense importaria diretamente, inclusive da Europa, facilitando o abastecimento da cidade. ( OLIVEIRA, p.45, 1999)

        Essas intervenções urbanas possibilitaram ganhos para a cidade, com o porto ampliado ocorreu uma intensificação das atividades comerciais entre a capital com os outros municípios e com outros estados, deste formatando novas perspectivas econômicas para os potiguares. Esse aspecto comercial da Ribeira, suas lojas, seus comerciantes, é bem registrado na obra Comerciantes e Firmas da Ribeira (1924 -1989)) – Reminiscências , Júlio César de Andrade, faz uma verdadeira “peregrinação” por ruas fervilhantes do ponto de vista comercial. Entre outras ruas e avenidas Andrade destaca a rua Dr Barata, conforme suas memórias: “Era o local de comércio chique da cidade. Aqui ficavam as principais casas da moda, por isso o lugar indicado para o footing”. Na época da 2ª Guerra Mundial o movimento e os negócios ali mais cresceram”.(ANDRADE, p. 69, 1989)
    Um ponto interessante para ser lembrado sobre a Ribeira é o encontro da intelectualidade natalense nas livrarias de intelectuais, estudantes, enfim, homens e mulheres amantes dos livros e de uma boa prosa. Assim:

[ ... ] na frente da Livraria Cosmopolita, reúne-se, todas as tardes, uma turma de primeira grandeza, de homens sérios, bem instalados na vida. O mais assíduo é o Dr. Nestor Lima, advogado famoso, presidente do Instituto Histórico, membro de todas as sociedades literárias da terra. Ali também assinam o ponto os juristas de notável saber, austeros desembargadores. Na Livraria Internacional, de João Rodrigues, depois de uma rápida passagem na Loja de Livros, de Santana e na Agência de Luís Romão, reúne-se a turma mais moça [ ... ] A Livraria Lima, de João Nicodemos de Lima, não é somente ponto de intelectuais, como também de estudantes [ ... ] Mas a freguesia da Livraria de João Nicodemos é principalmente ao “sebo” de livros velhos lá existente, onde encontra obras de real valor, misturados com aranhas caranguejeiras ... (MARANHÃO, p.61-62, 2004)

       Neste universo das escritas, reminiscências, poesias, crônicas, pesquisas acadêmicas, enfim, memórias são construídas ou preservadas de uma urbe do passado, além destes caminhos trilhados para adentrarmos a uma cidade não mais existente, a fotografia também se reveste como um importante instrumento de compreensão das transformações ocorridas ao longo do tempo. A cidade é sua escrita:
[...] Por vezes imperceptível na paisagem de um dia a outro, este deslocamento da escrita urbana deixa-se registrar e entrever na longa duração. [...] Este “deslocamento social do espaço” também acaba por se constituir em uma forma de escrita que pode ser decifrada. As motivações para este deslocamento podem ser lidas pelo historiador: a história da deterioração de um bairro pode revelar a mudança de um eixo econômico ou cultural, uma reorientação no tecido urbano que tornou periférico o que foi um dia central ou ponto de passagem importante. (BARROS, p.41-42, 2012)

São cenários, paisagens, ordenamentos, fronteiras, expansão do território urbano para depois dos limites do canal do Baldo, subida do areal do cemitério do Alecrim, antes zonas rurais, compondo deste modo a paisagem histórica da cidade de Natal. A cidade escrita – façamos a leitura da urbe através dos seus poetas, cronistas, fotógrafos -, diz da Ribeira que subiu a ladeira e expandiu-se por dunas e se estendeu para além das Quintas. Enfim, são inquietações, façamos o diálogo sobre a história e os caminhos da urbe.

REFERENCIAS
ANDRADE, Júlio César de. Comerciantes e firmas da Ribeira (1924 – 1989) – Reminiscências. Natal: Fundação José Augusto, 1989.
BARROS, José D’Assunção. Cidade e história. Petrópolis: Editora Vozes, 2012)
MARANHÃO, Djalma. Esquina da Tavares de Lira com a Dr. Barata, centro convergente e irradiador da vida natalense. Natal: Sebo Vermelho, 2004. (Org. Notas e Pesquisa: Cláudio Galvão)
OLIVEIRA, Giovana Paiva de. De cidade a cidade. Natal: EDUFRN, 1999.
TINÔCO, Lair. Tempo de saudade. Natal: Fundação José Augusto,1992.


                  Teatro Alberto Maranhão - Foto João Galvão - Década de 1920 - Acervo IHGRN


      Porto de Natal - Década de 1910 Foto Bruno Bourgard Acervo IHGRN









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