domingo, 14 de outubro de 2018

Escravidão: Um convite à reflexão

Escravidão: Um convite à reflexão
Luciano Capistrano
Professor e Historiador


Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...
(O Navio Negreiro - Castro Alves)

A sociedade brasileira traz na sua formação a triste nódoa de ter seus pilares fundadores, erguidos em fundamentos escravocratas. O processo de construção da nação brasileira, carrega, assim, o peso de ser porto de chegada de negros, vítimas da diáspora não desejada. A engrenagem montada por “civilizados” lusitanos, nas palavras de Darcy Ribeiro, criaram, neste lado do Atlântico, uma “máquina de moer gente”.
Existe uma frágil ideia, muito mais na tentativa de naturalizar ou amenizar o modelo de escravidão ibérico, de se fazer uma referência a escravidão realizada por africanos. Apesar das dificuldades em conceituar a escravidão africana, a historiografia caminhando de mãos dadas com outros campos do saber, aponta para as particularidades das diversas comunidades existentes, naquele continente, no período em que situa-se o “empreendimento colonial”. As diferenças entre o modelo escravocrata português e das comunidades africanas são bem claras:


Não é correto afirmar que “africanos” escravizavam “africanos” para vendê-los como escravos. A consciência coletiva de uma identidade continental entre os povos das nações africanas surgiu apenas no século XX, no momento de sua emancipação frente aos europeus. Até então, o sentimento de identidade não ia além da comunidade de aldeia, da linhagem, grupo tribal ou, no máximo, grupo linguístico. [...] Costuma-se designar o tipo de cativeiro praticado na África de “escravidão de linhagem”. Sua finalidade não era exploração econômica em larga escala, e também a perda de liberdade pessoal não era completa, pois os cativos permaneciam integrados ao grupo social dos vendedores. (MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Editora Contexto, p.101, 2013)



O processo de colonização empreendido pela Coroa Portuguesa teve como característica a degradação humana, aqui nos trópicos, os verdes canaviais e as cores reluzentes das minas, expandiram as fronteiras da economia real, com o sangue do negro escravizado. Aqui se estabeleceu a escravidão, enquanto, sistema econômico. Toda uma cadeia de atividades sócio-econômica foi fruto do modelo de utilização da mão-de-obra escrava. A foto da ama de leite, a mucama e o "menino", nesta foto do século XIX, como afirmou o historiador Alencastro, é bem ilustrativa dessa sociedade, que se perpetua ao longo de nossa história
A sociedade brasileira tem em todas as suas instituições uma pesada herança colonial, pois, os tempos da “escravidão legal”, criou no imaginário social a ideia do “trabalho como algo indigno”, ou  visto como uma desprezível condição de inferioridade social. Por exemplo:


Na Bahia, no início do século XIX, os escravos que trabalhavam como carregadores ou em outras profissões, eram o único sustento de famílias inteiras, que nada faziam. O trabalho, na realidade era considerado, pelas pessoas livres, algo de desonroso e digno apenas de servos. [...] No Brasil, a escravatura era muito mais do que uma instituição econômica, já que a propriedade de escravos não só era lucrativa, como também elevava o status do proprietário aos olhos dos outros. (CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.14-15, 1978)

Ao trazer à baila essa temática, o faço, de forma provocadora, no sentido, da necessária reflexão sobre um tema tão caro para a compreensão do que seja o povo brasileiro, uma nação resultado do encontros de civilizações, distintas, a europeia, a dos povos indígenas e a africana. Nas palavras de Darcy Ribeiro:


Nenhum povo que passasse por isso como uma rotina de vida, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós brasileiros somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. [...] A mais terrível de nossa herança é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce ainda hoje, em tantas autoridades brasileiras predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem ás mãos. Ela, porém, provocando crescentes indignação nos dará forças amanhã para conter os processos e criar aqui uma sociedade solidária. (RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, p 120, 1995)

Finalizo, este curto artigo, com os versos do poeta Castro Alves, como um convite à reflexão sobre os caminhos e descaminhos da formação do Brasil.

Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!…
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
(O Navio Negreiro - Castro Alves)




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