A CIDADE seus espaços, suas ESCRITAS!
Luciano Capistrano
Professor de História: Escola Estadual Myriam
Coeli
Mestrando: Profhistória/UFRN
“As cidades são antes de tudo uma experiência
visual. Traçado de ruas, essas vias de circulação ladeadas de construções, os
vazios das praças cercadas por igrejas e edifícios públicos, o movimento de
pessoas e a agitação das atividades comerciais concentradas num mesmo espaço. E
mais, um lugar saturado de significações acumuladas através do tempo, numa
produção social referida a alguma de suas formas de inserção topográfica ou
particularidades arquitetônicas. (BRESCIANNI, Maria Stella M. História e
historiografia das cidades, um percurso. In FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.) Historiografia
brasileira em perspectiva. São Paulo: Editora Contexto, 2003, p. 237-258).
Sou
daqueles que gostam de andar, caminhar por ruas e becos da cidade, vivenciar a
urbe, desvendar seus mistérios, ler suas escritas feitas em camadas do tempo. Dialogar
sobre o espaço urbano me fascina. Me inquieta os significados, das igrejas, do
casario, das estátuas, dos monumentos... dos silêncios erguidos em determinadas
épocas, silêncios a sufocar memórias incomodas aos senhores do tempo presente.
“As
cidades são antes de tudo uma experiência visual”. Nos ensina a Historiadora
Brescianni a pensar o cenário urbano e as memórias contidas em suas fachadas
coloridas ou sem cor, ao passar por ruas e becos encontramos a urbe, pulsante,
em um cruzamento do passado e presente, um a dizer do outro e os viventes do
tempo em diálogos permanentes. De tudo, uma certeza: não cabe no espaço urbano
a neutralidade, a urbe é o espaço da disputa, seu desenho, seus traços dizem do
resultado das “forças sociais”, vivas feitoras da cidade.
Ao
escrever essas inquietações faço ao ouvir vozes que ecoam nas ruas das grandes
cidades norte-americanas, são gritos de justiça depois do assassinato de George
Floyd. Os protestos antirracistas atravessaram as fronteiras dos EUA e reverberaram
o canto “Black Lives Matter (Vidas Negras Importam)”, numa ação legitima diante
de tão absurdo ato policial, a comunidade negra dos EUA lembrou das feridas não
cicatrizadas do passado escravocrata e das constantes ações policiais violentas
contra a comunidade negra. Londres, Paris, Rio de Janeiro... uma primavera
antirracista ocupa as cidades.
Faço
aqui uma advertência, me inquieta as vozes que se levantaram desde então, num
movimento de derrubada de Estátuas. Ecoaram a legitima ocupação das ruas e
praças. O ato mais simbólico desse movimento ocorreu no Reino Unido, a
derrubada da estátua do comerciante de escravizados Edward Colston. Os
monumentos são representações legitimas? A derrubadas de estátuas é um ato
legitimo? Vejamos o que diz o Professor de História Francisco Santiago Junior:
Essa iconoclastia das esculturas tem algo a
mais em comum com o assassinato de Floyd do que estamos supondo. O iconoclasta
é aquele que olha uma imagem e a vê como ídolo, ou seja, como “falso Deus”. É
uma estratégia bíblica sabemos, que está lá no Êxodos, no episódio no qual
Moisés quebra o bezerro de Ouro na descida do Monte Sinal. A escultura na praça
é uma imagem de ancestral da comunidade que ocupa o espaço público, uma imagem
para uma sociedade se reconhecer e se identificar por meio de seus fundadores.
Derrubar esculturas destes fundadores racistas é uma forma de reconhecê-los
como ídolos, convertê-los em falsos ancestrais, ou em fundadores indesejados. (https://passodotempo.wordpress.com/2020/06/08/agredindo-o-passado-iconoclasmo-e-antirracismo-contra-monumentos/ - acessado em 15/06/2020).
É
preciso pensar os significados desses protestos como também o que representa a
manutenção ou destruição de determinados Monumentos em Praças Públicas. O
debate está aberto. Nessa questão é importante fazer uma referência a memória,
entendendo-a como algo não neutro, a memória coletiva também é um lugar de
disputa dos diversos grupos sociais, assim:
[...] a memória coletiva fundamenta a própria
identidade do grupo ou comunidade, mas normalmente tende a se apegar a um
acontecimento considerado fundador, simplificando todo o restante do passado.
Por outro lado, ela também simplifica a noção de tempo, fazendo apenas grandes
diferenciações entre o presente (“nossos dias”) e o passado (“antigamente”, por
exemplo). Além disso, mais do que em datas, a memória coletiva se baseia em
imagens e paisagens. O próprio esquecimento é também um aspecto relevante para
a compreensão da memória de grupos e comunidades, pois muitas vezes é
voluntário, indicando vontade do grupo de ocultar determinados fatos. Assim, a
memória coletiva reelabora constantemente os fatos. (SILVA, Kalina Vanderlei;
SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Editora
Contexto, 2014, p.276)
A
paisagem urbana é resultado de nossas ações ao longo do tempo, isso é fato.
Planos urbanos, ações de urbanizações, delimitações do “uso e abuso” do
território da urbe nada é mais do que reflexo dos diálogos ou silêncios dos
segmentos sociais organizados ou desorganizados, a leitura do cenário urbano se
dá no tempo presente. Quantos significados encontramos num passeio por este
palco urbano? O que dizem o monumental? O que dizem as ausências? O que dizem
as intervenções urbanas?
A
uma questão importante nesse redemoinho de inquietação, o passado incomoda
quando é confrontado com o estabelecido como natural, ou melhor, naturalizado. A
memória preservada tem de ser posta diante da memória silenciada. Não basta
apenas o ato simbólico, mesmo que firmado nas bases de um novo repensar sobre o
passado, é necessário uma historiografia pautada em diálogos permanentes com
outros campos de saberes, antropologia, sociologia, filosofia, enfim, uma
relação dialógica do presente com o passado, não temos porque jogar para baixo
do tapete o passado, pelo contrario é preciso retirar as teias de aranhas a
impedir a sociedade de ver seu passado.
A
historiadora Lilia Moritz Schwarcz, em entrevista ao
Estadão faz umas considerações pertinentes sobre a derrubadas de estatuas como
forma de revisão de um passado. Ao ser questionada sobre a legitimidade do ato
de derrubada de monumentos aponta:
Eu acho que a questão é equivocada, que não se
trata de ser contra ou a favor porque não se trata de abrir ou fechar um
partido político que seja a favor ou contra esse tipo de manifestação. Eu sou a
favor da reflexão em cima desse tipo de manifestação. Eu sou absolutamente a
favor porque nós crescemos com uma historiografia que se chama de universal,
mas que não é universal. É uma historiografia que se detém sobretudo nas
conquistas e nos feitos das sociedades europeias e depois norte-americanas. Um
bom exemplo aqui é por que será que no Brasil, que foi colonizado por
portugueses, mas também indígenas e várias Áfricas, vários africanos, não temos
na nossa história uma referência a todas essas origens? Ou seja, não se fala
das inúmeras Áfricas que chegaram ao Brasil, as tecnologias, as filosofias, as
culturas materiais, as religiões que vieram nos navios negreiros. Também não
comentamos os inúmeros povos indígenas que estavam no Brasil quando os
portugueses chegaram. (https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,por-que-sera-que-todos-os-nossos-herois-sao-homens-e-brancos,70003333018 – Acessado em 15/062020)
Importante
o debate sobre os monumentos erguidos na cena urbana serem pensados não como
uma simples imagem de um herói ou um símbolo de uma época, faz necessário uma
visão histórica/crítica sobre estes passados. Não basta a derrubada, neste
sentido, comungo do pensamento da Professora de História, Lilia Moritz Schwarcz:
Penso sim que recuperar esses espaços
simbólicos é um ato muito significativo. Como nós vamos recuperar é uma outra
questão. Eu, particularmente, acho que não é o caso de destruir apenas. Eu
faria, por exemplo, um memorial crítico da escravidão, um memorial crítico da
colonização. Ou então, colocaria ao lado dessas, esculturas que tensionem esses
regimes de verdade. Esculturas que digam o oposto sobre essa pessoa. Existem
muitos mecanismos de fazê-lo, mas, por vezes, é preciso começar radicalizando
para que a sociedade preste atenção. Porque o que acontece no nosso cotidiano,
nós não vemos. Existe uma diferença muito grande entre enxergar e ver. Enxergar
é uma faculdade biológica, ver é uma opção cultural. Eu penso que os
brasileiros e de uma maneira geral a civilização ocidental enxerga, não vê. É
isso que fazemos diante dessas esculturas, desses monumentos. (https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,por-que-sera-que-todos-os-nossos-herois-sao-homens-e-brancos,70003333018
– Acessado em 15/062020).
A
CIDADE seus espaços, suas ESCRITAS, devem serem confrontadas e não
cristalizadas ou simplesmente destruídas. Olhando a cidade como um espaço
construído em camadas ao longo do tempo, façamos o confronto do passado com o
presente e pensemos em dar voz aquém foi silenciado ou simplesmente sofreu uma
pacificação do seu passado. É fundamental seguir os caminhos urbanos por suas
curvas e encruzilhadas emergindo desse caminhar no universo de Clio, os grupos
sociais silenciados em tempos de outrora. Recordar não é esconder os pecados,
sejam de heróis ou mitos. Pois o cidadão, muitas vezes chamado a enxergar e não
vê o Patrimônio Cultural tem de ser participe da constituição desse Patrimônio.
Urge:
[...] repovoar o patrimônio urbano, nele
reintroduzir o seu protagonista. Se examinarmos a bibliografia nacional
disponível, veremos que nossos estudiosos produziram um vasto rol de dados e
análises sobre o papel do Estado, da política, dos intelectuais, dos interesses
econômicos, das ideologias, da trajetória dos órgãos de preservação, dos
aspectos técnicos e sociais da preservação e conservação, da reabilitação
urbana e temas conexos. Há também numerosos estudos de muita qualidade sobre
cidade e cultura, cidade e patrimônio, cultura urbana. Conviria, agora, dar ao
habitante, no universo do patrimônio cultural, uma presença menos etérea.
(MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Repovoar o Patrimônio Ambiental Urbano. Revista
do Patrimônio, nº 36/2017, p.41).
Não pergunte apenas por que
preservamos a Fortaleza dos Reis Magos; Pergunte por que não erguemos memoriais
aos povos originários e aos negros escravizados; Pergunte, questione as marcas
erguidas em “pedra e sabão” e expostas em praças públicas como verdades
inquestionáveis, assim penso, assim caminho por becos e ruas da cidade e como
disse Câmara Cascudo: “Errariam menos os homens se lessem mais a história”.
Façamos da escrita da cidade uma leitura permanente.