segunda-feira, 15 de junho de 2020

A CIDADE seus espaços, suas ESCRITAS!

A CIDADE seus espaços, suas ESCRITAS!

Luciano Capistrano

Professor de História: Escola Estadual Myriam Coeli

Mestrando: Profhistória/UFRN

 

“As cidades são antes de tudo uma experiência visual. Traçado de ruas, essas vias de circulação ladeadas de construções, os vazios das praças cercadas por igrejas e edifícios públicos, o movimento de pessoas e a agitação das atividades comerciais concentradas num mesmo espaço. E mais, um lugar saturado de significações acumuladas através do tempo, numa produção social referida a alguma de suas formas de inserção topográfica ou particularidades arquitetônicas. (BRESCIANNI, Maria Stella M. História e historiografia das cidades, um percurso. In FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Editora Contexto, 2003, p. 237-258).

 

            Sou daqueles que gostam de andar, caminhar por ruas e becos da cidade, vivenciar a urbe, desvendar seus mistérios, ler suas escritas feitas em camadas do tempo. Dialogar sobre o espaço urbano me fascina. Me inquieta os significados, das igrejas, do casario, das estátuas, dos monumentos... dos silêncios erguidos em determinadas épocas, silêncios a sufocar memórias incomodas aos senhores do tempo presente.

            “As cidades são antes de tudo uma experiência visual”. Nos ensina a Historiadora Brescianni a pensar o cenário urbano e as memórias contidas em suas fachadas coloridas ou sem cor, ao passar por ruas e becos encontramos a urbe, pulsante, em um cruzamento do passado e presente, um a dizer do outro e os viventes do tempo em diálogos permanentes. De tudo, uma certeza: não cabe no espaço urbano a neutralidade, a urbe é o espaço da disputa, seu desenho, seus traços dizem do resultado das “forças sociais”, vivas feitoras da cidade.

            Ao escrever essas inquietações faço ao ouvir vozes que ecoam nas ruas das grandes cidades norte-americanas, são gritos de justiça depois do assassinato de George Floyd. Os protestos antirracistas atravessaram as fronteiras dos EUA e reverberaram o canto “Black Lives Matter (Vidas Negras Importam)”, numa ação legitima diante de tão absurdo ato policial, a comunidade negra dos EUA lembrou das feridas não cicatrizadas do passado escravocrata e das constantes ações policiais violentas contra a comunidade negra. Londres, Paris, Rio de Janeiro... uma primavera antirracista ocupa as cidades.

            Faço aqui uma advertência, me inquieta as vozes que se levantaram desde então, num movimento de derrubada de Estátuas. Ecoaram a legitima ocupação das ruas e praças. O ato mais simbólico desse movimento ocorreu no Reino Unido, a derrubada da estátua do comerciante de escravizados Edward Colston. Os monumentos são representações legitimas? A derrubadas de estátuas é um ato legitimo? Vejamos o que diz o Professor de História Francisco Santiago Junior:

 Essa iconoclastia das esculturas tem algo a mais em comum com o assassinato de Floyd do que estamos supondo. O iconoclasta é aquele que olha uma imagem e a vê como ídolo, ou seja, como “falso Deus”. É uma estratégia bíblica sabemos, que está lá no Êxodos, no episódio no qual Moisés quebra o bezerro de Ouro na descida do Monte Sinal. A escultura na praça é uma imagem de ancestral da comunidade que ocupa o espaço público, uma imagem para uma sociedade se reconhecer e se identificar por meio de seus fundadores. Derrubar esculturas destes fundadores racistas é uma forma de reconhecê-los como ídolos, convertê-los em falsos ancestrais, ou em fundadores indesejados. (https://passodotempo.wordpress.com/2020/06/08/agredindo-o-passado-iconoclasmo-e-antirracismo-contra-monumentos/  - acessado em 15/06/2020).

             É preciso pensar os significados desses protestos como também o que representa a manutenção ou destruição de determinados Monumentos em Praças Públicas. O debate está aberto. Nessa questão é importante fazer uma referência a memória, entendendo-a como algo não neutro, a memória coletiva também é um lugar de disputa dos diversos grupos sociais, assim:

 [...] a memória coletiva fundamenta a própria identidade do grupo ou comunidade, mas normalmente tende a se apegar a um acontecimento considerado fundador, simplificando todo o restante do passado. Por outro lado, ela também simplifica a noção de tempo, fazendo apenas grandes diferenciações entre o presente (“nossos dias”) e o passado (“antigamente”, por exemplo). Além disso, mais do que em datas, a memória coletiva se baseia em imagens e paisagens. O próprio esquecimento é também um aspecto relevante para a compreensão da memória de grupos e comunidades, pois muitas vezes é voluntário, indicando vontade do grupo de ocultar determinados fatos. Assim, a memória coletiva reelabora constantemente os fatos. (SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Editora Contexto, 2014, p.276)

             A paisagem urbana é resultado de nossas ações ao longo do tempo, isso é fato. Planos urbanos, ações de urbanizações, delimitações do “uso e abuso” do território da urbe nada é mais do que reflexo dos diálogos ou silêncios dos segmentos sociais organizados ou desorganizados, a leitura do cenário urbano se dá no tempo presente. Quantos significados encontramos num passeio por este palco urbano? O que dizem o monumental? O que dizem as ausências? O que dizem as intervenções urbanas?

            A uma questão importante nesse redemoinho de inquietação, o passado incomoda quando é confrontado com o estabelecido como natural, ou melhor, naturalizado. A memória preservada tem de ser posta diante da memória silenciada. Não basta apenas o ato simbólico, mesmo que firmado nas bases de um novo repensar sobre o passado, é necessário uma historiografia pautada em diálogos permanentes com outros campos de saberes, antropologia, sociologia, filosofia, enfim, uma relação dialógica do presente com o passado, não temos porque jogar para baixo do tapete o passado, pelo contrario é preciso retirar as teias de aranhas a impedir a sociedade de ver seu passado.

            A historiadora Lilia Moritz Schwarcz, em entrevista ao Estadão faz umas considerações pertinentes sobre a derrubadas de estatuas como forma de revisão de um passado. Ao ser questionada sobre a legitimidade do ato de derrubada de monumentos aponta:

 Eu acho que a questão é equivocada, que não se trata de ser contra ou a favor porque não se trata de abrir ou fechar um partido político que seja a favor ou contra esse tipo de manifestação. Eu sou a favor da reflexão em cima desse tipo de manifestação. Eu sou absolutamente a favor porque nós crescemos com uma historiografia que se chama de universal, mas que não é universal. É uma historiografia que se detém sobretudo nas conquistas e nos feitos das sociedades europeias e depois norte-americanas. Um bom exemplo aqui é por que será que no Brasil, que foi colonizado por portugueses, mas também indígenas e várias Áfricas, vários africanos, não temos na nossa história uma referência a todas essas origens? Ou seja, não se fala das inúmeras Áfricas que chegaram ao Brasil, as tecnologias, as filosofias, as culturas materiais, as religiões que vieram nos navios negreiros. Também não comentamos os inúmeros povos indígenas que estavam no Brasil quando os portugueses chegaram. (https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,por-que-sera-que-todos-os-nossos-herois-sao-homens-e-brancos,70003333018 – Acessado em 15/062020)

            Importante o debate sobre os monumentos erguidos na cena urbana serem pensados não como uma simples imagem de um herói ou um símbolo de uma época, faz necessário uma visão histórica/crítica sobre estes passados. Não basta a derrubada, neste sentido, comungo do pensamento da Professora de História, Lilia Moritz Schwarcz:

Penso sim que recuperar esses espaços simbólicos é um ato muito significativo. Como nós vamos recuperar é uma outra questão. Eu, particularmente, acho que não é o caso de destruir apenas. Eu faria, por exemplo, um memorial crítico da escravidão, um memorial crítico da colonização. Ou então, colocaria ao lado dessas, esculturas que tensionem esses regimes de verdade. Esculturas que digam o oposto sobre essa pessoa. Existem muitos mecanismos de fazê-lo, mas, por vezes, é preciso começar radicalizando para que a sociedade preste atenção. Porque o que acontece no nosso cotidiano, nós não vemos. Existe uma diferença muito grande entre enxergar e ver. Enxergar é uma faculdade biológica, ver é uma opção cultural. Eu penso que os brasileiros e de uma maneira geral a civilização ocidental enxerga, não vê. É isso que fazemos diante dessas esculturas, desses monumentos. (https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,por-que-sera-que-todos-os-nossos-herois-sao-homens-e-brancos,70003333018 – Acessado em 15/062020).

             A CIDADE seus espaços, suas ESCRITAS, devem serem confrontadas e não cristalizadas ou simplesmente destruídas. Olhando a cidade como um espaço construído em camadas ao longo do tempo, façamos o confronto do passado com o presente e pensemos em dar voz aquém foi silenciado ou simplesmente sofreu uma pacificação do seu passado. É fundamental seguir os caminhos urbanos por suas curvas e encruzilhadas emergindo desse caminhar no universo de Clio, os grupos sociais silenciados em tempos de outrora. Recordar não é esconder os pecados, sejam de heróis ou mitos. Pois o cidadão, muitas vezes chamado a enxergar e não vê o Patrimônio Cultural tem de ser participe da constituição desse Patrimônio. Urge:

 [...] repovoar o patrimônio urbano, nele reintroduzir o seu protagonista. Se examinarmos a bibliografia nacional disponível, veremos que nossos estudiosos produziram um vasto rol de dados e análises sobre o papel do Estado, da política, dos intelectuais, dos interesses econômicos, das ideologias, da trajetória dos órgãos de preservação, dos aspectos técnicos e sociais da preservação e conservação, da reabilitação urbana e temas conexos. Há também numerosos estudos de muita qualidade sobre cidade e cultura, cidade e patrimônio, cultura urbana. Conviria, agora, dar ao habitante, no universo do patrimônio cultural, uma presença menos etérea. (MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Repovoar o Patrimônio Ambiental Urbano. Revista do Patrimônio, nº 36/2017, p.41).

             Não pergunte apenas por que preservamos a Fortaleza dos Reis Magos; Pergunte por que não erguemos memoriais aos povos originários e aos negros escravizados; Pergunte, questione as marcas erguidas em “pedra e sabão” e expostas em praças públicas como verdades inquestionáveis, assim penso, assim caminho por becos e ruas da cidade e como disse Câmara Cascudo: “Errariam menos os homens se lessem mais a história”. Façamos da escrita da cidade uma leitura permanente.

 

 

 

 

 

 


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  A esperança se vestiu de cinza.               Aqui faço um recorte de algumas leituras que de alguma forma dialogam sobre os efeitos noc...