terça-feira, 30 de julho de 2019

A Constituição de 1988 e duas fotografias

A Constituição de 1988 e duas fotografias. 
Luciano Capistrano 
Professor de História 
– Escola Estadual Myriam Coeli 
- Mestrando do PROFHISTÓRIA / UFRN 


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; 
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; 
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; 
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; 
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; 
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; 
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; 
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; 
[...] 


          Início este artigo com a evocação a Constituição Cidadã, como a denominou Ulisses Guimarães, de 1988. Utilizo nessa jornada o Artigo 5 e alguns de seus incisos. Faço essa escolha para evidenciar a importância de termos uma Carta Magna com as garantias individuais definidas em seus artigos. Uma constituição proclamada depois de 21 anos de governos autoritários, governos esses que pautaram suas ações sob o manto autoritário do famigerado AI – 5 e outros instrumentos criados nos obscuros corredores da ditadura civil/militar. 
            Ao escrever essas linhas, me vem a memória a casa de minha avó Aline, moradora do Conjunto Habitacional Candelária, sua casa era, e ainda é com minha tia Rosa, o ponto de encontro da família. Nos almoços de domingo, a situação sociopolítica do país fazia parte do cardápio, bons momentos de educação política em família. A Constituição de 1988 e a casa de Vovó Aline, tem em comum a liberdade de expressão, o amor por uma sociedade democrática. A cozinha lugar do aconchego, do café quentinho e das conversas muitas vezes acaloradas mais sempre fundadas em uma base de respeito as pluralidades de ideias. Importante lição de vovó, o respeito as diferentes opções políticas. 
            Antes da Constituição, o movimento das Diretas Já, foi o cenário da grande “explosão” das vozes amordaçadas. 
             A Campanha das Diretas Já, os embates políticos mobilizando corações e mentes, um país de cores, de alegres canções renascia nas ruas e praças, a democracia voltava a dar o “ar de sua graça” em todos os quadrantes do Brasil. Depois de mais de 20 anos iniciou o processo de desmonte do arcabouço jurídico autoritário e o submundo dos “ustras” e “fleurys”, esquadrões da morte a serviço da ultra direita, responsáveis entre outros os atentados do Rio Centro. O Brasil caminhava e cantava... 

“...Já podaram seus momentos 

Desviaram seu destino 

Seu sorriso de menino 

Quantas vezes se escondeu 

Mas renova-se a esperança 

Nova aurora a cada dia 

E há que se cuidar do broto 

Pra que a vida nos dê 

Flor, flor e fruto...” (Coração de Estudante – Milton Nascimento) 

             Milton Nascimento traduz em versos o sentimento da sociedade brasileira, Coração de Estudante ganha status de hino das ruas, do centro a periferia o tom era o das lutas pela volta à normalidade democrática interrompida com o golpe militar/civil de 1964. A luta em favor da aprovação da Emenda Constitucional “Dante de Oliveira”, a Emenda Constitucional que restabelecia a eleição direta para presidente foi derrotada no Congresso. Um balde de água fria foi jogada nos anseios da maioria dos brasileiros. Era último suspiro do regime militar. 
                Os tempos das eleições indiretas estavam com os dias contados. 
              Derrotados no Congresso os Partidos de oposição, ao governo, sintonizados com o clamor que vinham das ruas, se rearticularam, agora para enfrentar o governo autoritário, nos “muros” do Colégio Eleitoral. Paulo Maluf, candidato dos militares, daí derrotado, a cisão da base de apoio ao governo, liderada por José Sarney, abre o caminho para a eleição de Tancredo Neves. Ganha o centro moderado. 
         Faço um recuo no tempo, acredito necessário para tecer uma rede de entrelaço, entre a abertura política coroada com a Constituição de 1988 e o General Presidente Ernesto Geisel, o homem da caserna responsável em abrir as portas do país para o reestabelecimento da democracia. Esteve aqui em Natal e banhou-se na praia dos Artistas. Abaixo a foto e o depoimento do fotografo Orlando Brito: 

Às seis da manhã, fui acordado por um dos “donos” do apartamento assustado com o que estava vendo: o general, vestindo de short, caminhando na praia. Inexplicavelmente, nenhum deles teve a iniciativa de retratar o momento tão raro e simbólico. Não tive dúvida. Coloquei uma teleobjetiva de 300 milímetros na minha inseparável Nikon e rodei dois rolos de filmes, sem sair de onde estava, no cantinho do quarto, junto à janela. (Orlando Brito, era reporte fotográfico do O Globo, responsável em fazer a cobertura Presidencial – acessado em http://orlandobrito.com.br/wordpress/?p=543) 


   O Presidente General Ernesto Geisel de calção de banho caminha tranquilamente na Praia dos             Artistas. Foto: Orlando Brito 

           Ernesto Geisel foi o Presidente que deu início ao período de transição da face mais dura da ditadura militar, definida pelo general-presidente como lenta, gradual e segura. Em seu governo enfrentou a ala dura dos militares, a direita explosiva não satisfeita com o projeto de retorno a vida democrática, desencadeou uma série de onda repressiva com prisões, torturas, assassinatos, ações orquestradas a margem do Estado Oficial, era um verdadeiro estado paralelo agindo no submundo do regime constituído. Um caso bem ilustrativo dessas ações criminosas realizadas por uma direita desvairada e fascista, foi o caso do jornalista Vladimir Herzog: 

Em outubro de 1975, no curso de uma onda repressiva, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi intimado a comparecer ao DOI-Codi, por suspeita de ter ligações com o PCB. Herzog apresentou-se ao DOI-Codi e dali não saiu vivo. Sua morte foi apresentada como suicídio por enforcamento, uma forma grosseira de encobrir a realidade: tortura seguida de morte. (FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2018, p. 273) 



Na foto a farsa montada para esconder o assassinato de Vladimir Herzog - Foto: Silvado Leung Vieira, 

               O General Presidente Ernesto Geisel apesar de ter um posicionamento duro contra a morte do jornalista Vladimir Herzog, criticando duramente o comandante do II Exército, recebeu três meses depois um recado da direita explosiva. O operário Manoel Filho foi torturado e morto nas mesmas condições do jornalista. Geisel, demite o seu ministro do Exército Sylvio Frota, um militar abertamente contrário a abertura política que estava em curso. Ao demiti Frota, o Presidente deu um recado duro a extrema direita: a democracia era um caminho sem volta. 
              Chego ao fim deste artigo, com uma provocação ao leitor, para fazer um exercício de análise, destas duas fotos, a do presidente na Praia dos Artista e a da farsa montada pelos agentes da repressão política. Nas duas fotos o Brasil e suas facetas de um dos períodos mais dramáticos de nossa história republicana. A Constituição de 1988 e duas fotografias, seja, então, um motivo para um diálogo necessário sobre a importância de sermos vigilantes aos direitos expressos na Constituição Brasileira. 
            Nestes tempos em que o Presidente Jair Bolsonaro tem como ídolo o torturador Brilhante Ustra e faz ironias com o assassinato de Fernando Santa Cruz, pai do Presidente da OAB Nacional, Felipe Santa Cruz, cabe trazer ao debate a postura do General Presidente Ernesto Geisel que se posicionou contra a direita explosiva da qual, é o que parece, o Presidente do Brasil tem saudades. 
        Encerro com as palavras do Deputado Ulisses Guimarães quando da Proclamação da Constituição de 1988: “A sociedade foi Rubens Paiva e não os facínoras que o mataram”.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Fez Noite escura na Vila Mauricio de minha infância



Luciano Capistrano
Professor e Historiador

            Festas juninas, fogueiras, balões, bandeirinhas e um baú de memórias a dizer de uma cidade que ficou no passado. A Natal avançou para além das Quintas e as cinzas das fogueiras de outrora, os sons dos fogos, traques, chumbinho, quase não se vê, A modernidade da urbe reservou para o antigo e empoeirado álbum as recordações dos festejos juninos.
           As brincadeiras em volta da fogueira, as comidas a base de milho, eram tudo motivo para a criançada e adultos abraçarem a noite de céu estrelado, a espera da lua ou do sol. Quadrilhas improvisadas e as ensaiadas, com o marcador ao centro, e o trio a tocar, sanfona, triangulo e zabumba, dando o ritmo do forró deixando os casais com o suor pingando, escorrendo pelo rosto.
Oxente, seu menino, sua menina, este texto segui uma pagada saudosista, me vejo como a escrever em uma Remington, e a ouvir nas ondas do rádio Elino Julião e seu Forró da Coréia:
Barco perdido, bem carregado
Eu tinha chegado em Natal
Muito mal eu sabia
Onde eram as Rocas
Caí na fofoca legal

Do Arial eu fui à pista
Limpei a pista na Vedéia
Saí tomando uns capilés
Quando eu dei fé
Tava na coréia

Só tem véia
Só tem véia
No Forró da Coréia


   Foto: Luciano Capistrano
    
           É neste embalo que trago à memória meus dias de criança, calças curtas, correndo, na Vila Mauricio. Meu mundo encantado, lugar das alegres fantasias, ao doce sabor das pinhas encontradas no quintal de casa, meu refúgio. Menino, da vila, me alegrava os dias de chuva, quando, senhor dos mares, via naufragar na correnteza de águas turvas, que invadiam a vila, e, muitas vezes minha casa e dos vizinhos, os barquinhos de papéis.

Infantis Navegantes


Navegadores dos tempos de outrora
Em barquinhos de papéis
Dos dias de chuvas
Córregos
Enxurradas
Límpidas, puras , crianças a brincar
Nas ruas, por entre bicas e gotas,
A  molhar
De felicidades inocentes
No infinito mundo
Da Vila Maurício, guardada
No baú das alegres brincadeiras
De crianças
Infantis navegantes.
(Luciano Capistrano)

            Nestes tempos confusos, em que a humanidade, caminha em direção ao fundo do abismo da individualidade, relembrar a infância chega a ser uma dose de ânimos para acreditar em um mundo mais solidário, mais alegre, como alegre foram meus dias na Vila Mauricio. Apesar das noites sombrias.
           Lá na vila, descobri também a dor do outro. Duas imagens não saem das minhas lembranças. Uma de um menino, não recordo o nome, sendo carregado nos braços, já sem vida, depois de ter se acidentado na linha férrea quando brincava com seu carrinho de rolimã, e , a outra imagem que me impactou, foi quando em uma certa manhã, entrei na mercearia de seu Albano e vi no chão uma senhora a comer restos de macarrão, me pareceu uma mistura de macarrão com “graxa” de galinha, derramada no chão.
           Essas imagens seguem meu viver.
           O mundo da Vila Maurício, na avenida 12, bairro das Quintas, tem também a marca das noites, que eu e meus irmãos, acompanhados com minha mãe Ceci, dormíamos, juntinhos, nas noites frias em que papai, Benjamin, viajava para Recife, onde respondia um processo na justiça militar, por suas ideias nos obscuros anos do pós abril de 1964. Tempos de perseguição as ideias, quando o autoritarismo verde oliva, unido a setores da sociedade brasileira, interromperam o governo do Presidente João Goulart, e, instauraram um governo de caráter ditatorial.
         Ecoa nos ouvidos das minhas lembranças, sons dos medos de minha mãe, de uma possível prisão de papai. A cada viagem a Recife, a cada intimação, um descompasso no coração. Naqueles tempos mamãe já sabia das diversas histórias de torturas e desaparecimentos de presos políticos. Em 09 de abril de 1964, papai foi enquadrado no Ato Institucional Nº 1, sendo afastado do serviço público, passou junto com mamãe e minha irmã mais velha, Rejane, momentos de aflição e privações. Fez Noite escura na Vila Mauricio de minha infância!
         O som de Elino Julião, as fogueiras e os chumbinhos, já fazem parte de um pôr do sol a anunciar que a noite não é para sempre e apesar das noites obscuras, o sol das liberdades democráticas, sempre vem.
         Façamos das nossas inquietações, sempre, um diálogo democrático.
    Foto: Luciano Capistrano
    



A esperança se vestiu de cinza.

  A esperança se vestiu de cinza.               Aqui faço um recorte de algumas leituras que de alguma forma dialogam sobre os efeitos noc...