A Constituição de 1988 e duas fotografias.
Luciano Capistrano
Professor de História
– Escola Estadual Myriam Coeli
- Mestrando do PROFHISTÓRIA / UFRN
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
[...]
Início este artigo com a evocação a Constituição Cidadã, como a denominou Ulisses Guimarães, de 1988. Utilizo nessa jornada o Artigo 5 e alguns de seus incisos. Faço essa escolha para evidenciar a importância de termos uma Carta Magna com as garantias individuais definidas em seus artigos. Uma constituição proclamada depois de 21 anos de governos autoritários, governos esses que pautaram suas ações sob o manto autoritário do famigerado AI – 5 e outros instrumentos criados nos obscuros corredores da ditadura civil/militar.
Ao escrever essas linhas, me vem a memória a casa de minha avó Aline, moradora do Conjunto Habitacional Candelária, sua casa era, e ainda é com minha tia Rosa, o ponto de encontro da família. Nos almoços de domingo, a situação sociopolítica do país fazia parte do cardápio, bons momentos de educação política em família. A Constituição de 1988 e a casa de Vovó Aline, tem em comum a liberdade de expressão, o amor por uma sociedade democrática. A cozinha lugar do aconchego, do café quentinho e das conversas muitas vezes acaloradas mais sempre fundadas em uma base de respeito as pluralidades de ideias. Importante lição de vovó, o respeito as diferentes opções políticas.
Antes da Constituição, o movimento das Diretas Já, foi o cenário da grande “explosão” das vozes amordaçadas.
A Campanha das Diretas Já, os embates políticos mobilizando corações e mentes, um país de cores, de alegres canções renascia nas ruas e praças, a democracia voltava a dar o “ar de sua graça” em todos os quadrantes do Brasil. Depois de mais de 20 anos iniciou o processo de desmonte do arcabouço jurídico autoritário e o submundo dos “ustras” e “fleurys”, esquadrões da morte a serviço da ultra direita, responsáveis entre outros os atentados do Rio Centro. O Brasil caminhava e cantava...
“...Já podaram seus momentos
Desviaram seu destino
Seu sorriso de menino
Quantas vezes se escondeu
Mas renova-se a esperança
Nova aurora a cada dia
E há que se cuidar do broto
Pra que a vida nos dê
Flor, flor e fruto...” (Coração de Estudante – Milton Nascimento)
Milton Nascimento traduz em versos o sentimento da sociedade brasileira, Coração de Estudante ganha status de hino das ruas, do centro a periferia o tom era o das lutas pela volta à normalidade democrática interrompida com o golpe militar/civil de 1964. A luta em favor da aprovação da Emenda Constitucional “Dante de Oliveira”, a Emenda Constitucional que restabelecia a eleição direta para presidente foi derrotada no Congresso. Um balde de água fria foi jogada nos anseios da maioria dos brasileiros. Era último suspiro do regime militar.
Os tempos das eleições indiretas estavam com os dias contados.
Derrotados no Congresso os Partidos de oposição, ao governo, sintonizados com o clamor que vinham das ruas, se rearticularam, agora para enfrentar o governo autoritário, nos “muros” do Colégio Eleitoral. Paulo Maluf, candidato dos militares, daí derrotado, a cisão da base de apoio ao governo, liderada por José Sarney, abre o caminho para a eleição de Tancredo Neves. Ganha o centro moderado.
Faço um recuo no tempo, acredito necessário para tecer uma rede de entrelaço, entre a abertura política coroada com a Constituição de 1988 e o General Presidente Ernesto Geisel, o homem da caserna responsável em abrir as portas do país para o reestabelecimento da democracia. Esteve aqui em Natal e banhou-se na praia dos Artistas. Abaixo a foto e o depoimento do fotografo Orlando Brito:
Às seis da manhã, fui acordado por um dos “donos” do apartamento assustado com o que estava vendo: o general, vestindo de short, caminhando na praia. Inexplicavelmente, nenhum deles teve a iniciativa de retratar o momento tão raro e simbólico. Não tive dúvida. Coloquei uma teleobjetiva de 300 milímetros na minha inseparável Nikon e rodei dois rolos de filmes, sem sair de onde estava, no cantinho do quarto, junto à janela. (Orlando Brito, era reporte fotográfico do O Globo, responsável em fazer a cobertura Presidencial – acessado em http://orlandobrito.com.br/wordpress/?p=543)
O Presidente General Ernesto Geisel de calção de banho caminha tranquilamente na Praia dos Artistas. Foto: Orlando Brito
Ernesto Geisel foi o Presidente que deu início ao período de transição da face mais dura da ditadura militar, definida pelo general-presidente como lenta, gradual e segura. Em seu governo enfrentou a ala dura dos militares, a direita explosiva não satisfeita com o projeto de retorno a vida democrática, desencadeou uma série de onda repressiva com prisões, torturas, assassinatos, ações orquestradas a margem do Estado Oficial, era um verdadeiro estado paralelo agindo no submundo do regime constituído. Um caso bem ilustrativo dessas ações criminosas realizadas por uma direita desvairada e fascista, foi o caso do jornalista Vladimir Herzog:
Em outubro de 1975, no curso de uma onda repressiva, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi intimado a comparecer ao DOI-Codi, por suspeita de ter ligações com o PCB. Herzog apresentou-se ao DOI-Codi e dali não saiu vivo. Sua morte foi apresentada como suicídio por enforcamento, uma forma grosseira de encobrir a realidade: tortura seguida de morte. (FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2018, p. 273)
Na foto a farsa montada para esconder o assassinato de Vladimir Herzog - Foto: Silvado Leung Vieira,
O General Presidente Ernesto Geisel apesar de ter um posicionamento duro contra a morte do jornalista Vladimir Herzog, criticando duramente o comandante do II Exército, recebeu três meses depois um recado da direita explosiva. O operário Manoel Filho foi torturado e morto nas mesmas condições do jornalista. Geisel, demite o seu ministro do Exército Sylvio Frota, um militar abertamente contrário a abertura política que estava em curso. Ao demiti Frota, o Presidente deu um recado duro a extrema direita: a democracia era um caminho sem volta.
Chego ao fim deste artigo, com uma provocação ao leitor, para fazer um exercício de análise, destas duas fotos, a do presidente na Praia dos Artista e a da farsa montada pelos agentes da repressão política. Nas duas fotos o Brasil e suas facetas de um dos períodos mais dramáticos de nossa história republicana. A Constituição de 1988 e duas fotografias, seja, então, um motivo para um diálogo necessário sobre a importância de sermos vigilantes aos direitos expressos na Constituição Brasileira.
Nestes tempos em que o Presidente Jair Bolsonaro tem como ídolo o torturador Brilhante Ustra e faz ironias com o assassinato de Fernando Santa Cruz, pai do Presidente da OAB Nacional, Felipe Santa Cruz, cabe trazer ao debate a postura do General Presidente Ernesto Geisel que se posicionou contra a direita explosiva da qual, é o que parece, o Presidente do Brasil tem saudades.
Encerro com as palavras do Deputado Ulisses Guimarães quando da Proclamação da Constituição de 1988: “A sociedade foi Rubens Paiva e não os facínoras que o mataram”.