domingo, 3 de maio de 2020

Covid 19: Estamos todos no mesmo barco?


Covid 19: Estamos todos no mesmo barco?
Luciano Capistrano
Professor de História: Escola Estadual Myriam Coeli
Mestrando: Profhistória/UFRN

            “Tem uma coisa sobre a Covid 19: Ele não liga se você é rico ou pobre, quanto famoso você é”. (Madona)

            Essa afirmação de Madona tem verdades contraditórias, digamos, com a nossa realidade e a de muitos outros países. Em algumas nações o nível de enfrentamento da pandemia ocorre em certo grau de igualdade, mas essa situação não é comum a maioria das nações. Por que me refiro a contradições? Uma vez enfermo com este novo coronavírus, independente das condições socioeconômicas necessitaremos dos mesmos cuidados? Não estaremos igualmente correndo os mesmos riscos? Aparentemente sim. Agora o que pretendo trazer ao diálogo são o incomodo que me causa ao ouvir essas afirmações que estamos no mesmo barco.
            Uma das questões em evidencia diz respeito as politicas de prevenção orientadas pelos diversos organismos de saúde pública, como a OMS (Organização Mundial de Saúde) e o Ministério da Saúde, o Isolamento Social e o Distanciamento Social. A Quarentena é vivenciada em igualdade por todos nós? Estamos todos no mesmo “barco”, nessa crise, da Covid 19.
            Diante das questões façamos um percurso, mesmo rápido, sobre aspectos da urbanização de Natal na busca de compreender a relação da formação territorial da urbe e as possíveis respostas sobre se estamos todos no mesmo “barco” nessa crise da Covid 19.
            Uma das realidades postas dizem respeito ao traçado urbano, me refiro a cidade de Natal, como apontou o Professor Pedro de Lima, desde o Plano Polidrelli (1901-1904) a urbanização se pautou nas vias abertas naquele grande “loteamento”. Conhecido como Plano da Cidade Nova, origem do terceiro bairro da cidade, hoje Tirol e Petrópolis, consolidava o viés da segregação espacial das classes sociais. Assim:

A Cidade Nova se constituiu em uma dupla solução para o desejo de autossegregação das classes dominantes locais. Por outro lado, o Plano Polidrelli superaria o antigo desenho originário da cidade colonial, onde as classes conviviam, praticamente, no mesmo espaço ou guardando uma certa contiguidade. Por outro lado, serviria como refúgio, onde as classes dominantes poderiam se proteger do contato com as péssimas condições ambientais e das epidemias que então, grassavam a cidade. (LIMA, Pedro de. Natal século XX: do urbanismo ao planejamento urbano. Natal: EDUFRN, 2001, P.35)

            Ocorreu então um processo de feitura de uma cidade da exclusão, a  princípio pode parecer muito pretencioso essa definição, mas corrobora com essa perspectiva as criticas do Jornalista Elias Souto, opositor a oligarquia chefiada por Pedro Velho, foi contundente ao se referir ao terceiro bairro que nascia, a Cidade Nova, de Cidade das Lágrimas. Denunciava em seu pasquim as desapropriações e expulsam das famílias pobres das terras loteadas para receber a elite republicana em seu novo habitat.
            Essa marca da exclusão ou dos lugares sem infraestruturas para as camadas mais pobres é um dos principais problemas das políticas urbanas a se arrastarem anos a anos, administrações a administrações municipais. Uma olhada sobre as regiões administrativas de Natal e já percebemos essas diferenças. Podemos dizer que existem diversas cidades em uma. Como no romance da escritora Thrity Umrigar, A Distância Entre Nós:

Bhima termina seu trabalho e dirige-se a torneira. Suspira ao ver a longa fila serpenteando para além dos barracos negros de aparência desordenada, com seus telhados de zinco remendados.  A luz matinal torna a miséria da favela ainda mais visível. Os esgotos a céu aberto com seu cheiro desagradável e pungente, as escuras fileiras de barracos oblíquos [...[.(UMRIGAR, Thrity. A distância entre nós. São Paulo: Edição Folha de São Paulo, 2005, p.14).

            Existe uma cidade real composta de distâncias socioeconômicas desnudas principalmente nos dias atuais. Para grande parcela da população de Natal não é fácil seguir as orientações das autoridades com relação ao isolamento social. E, aqui faço uma provocação: Não estamos no mesmo barco, a pandemia da Covid 19 escancarou a cruel realidade social. Como falar em “Isolamento Social” ou “Distanciamento Social” em uma comunidade cortada por vielas e becos estreitos, casebres de um ou dois cômodos onde moram mais de 4 pessoas, entre crianças, adultos e idosos? Como falar em “Isolamento Social” ou “Distanciamento Social” para uma população de rua?
            São muitos os desafios diante de uma sociedade marcada pela distância socioeconômica.
            Ao aproximar do fim lembro das pesquisas que apontam uma curva em crescimento dos casos da Covid 19 nos bairros mais afastados das aéreas nobres, a um deslocamento dos índices de contágios. No início dos primeiros registros, a concentração das notificações corria nos bairros nobres, Triol e Petrópolis, nos últimos dias o epicentro apresenta um movimento para o bairro Potengi, conforme os dados do dia 30/04.
            Duas questões para nos provocar reflexões sobre os motivos desse deslocamento do epicentro da Covid 19 dos bairros nobres para a periferia de Natal, o problema da habitação e o subemprego, o contagio caminha na rota dos “invisíveis” da sociedade. Onde estão as políticas públicas? Onde estão os programas de renda mínimas? Neste momento fariam a diferença. Existe um divida histórica que precisa ser paga. Pois, ainda ouvimos as vozes dos sem tetos, dos invisíveis, dos excluídos a dizerem: NÃO ESTAMOS NO MESMO BARCO. A cidade do Natal de 2020 ainda convive com uma Natal de 1960, assim nos informa o historiador Wesley Garcia obre as mães sem tetos:

O destino das mães era semelhante ao daqueles que à noite, em frente ao então mercado da Cidade Alta, quando as lojas fechavam e o trânsito de veículos e pedestres ficava quase extinto, começavam a chegar, muitos dos quais balaeiros do mercado, para dormirem nos batentes da lojas fronteiriças, cobertos muitas vezes apenas com um jornal. [..] Assim, o problema da falta de trabalho, da mendicância e da falta de habitação se constituía como desafio para os poderes públicos da década de 1960. Na Cidade do Natal. (SILVA, Wesley Garcia Ribeiro da. Cartografia dos tempos urbanos: Representações, cultura e poder na Cidade do Natal (década de 1960). Natal: EDUFRN, 2011, p. 118).

            Finalizo com a provocação inicial: Covid 19: Estamos todos no mesmo barco?



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